segunda-feira, 20 de abril de 2009

Folhas Soltas (poesia)

VOZES DO MAR

Quando o sol vai caindo sobre as águas
Num nervoso delíquio d'oiro intenso,
Donde vem essa voz cheia de mágoas
Com que falas à terra, ó mar imenso?...
Tu falas de festins, e cavalgadas
De cavaleiros errantes ao luar?
Falas de caravelas encantadas
Que dormem em teu seio a soluçar?
Tens cantos d'epopeias?
Tens anseiosD'amarguras?
Tu tens também receios,
Ó mar cheio de esperança e majestade?!
Donde vem essa voz, ó mar amigo?......
Talvez a voz do Portugal antigo,
Chamando por Camões numa saudade!
Florbela Espanca



LIBERDADE


'Ai que prazernão cumprir um dever.

Ter um livro para lere não o fazer!

Ler é maçada,estudar é nada.

O sol doira sem literatura.

O rio corre bem ou mal,sem edição original.

E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal

como tem tempo, não tem pressa...



'Livros são papéis pintados com tinta.

Estudar é uma coisa em que está indistinta

A distinção entre nada e coisa nenhuma.



'Quanto melhor é quando há bruma.

Esperar por D. Sebastião,

Quer venha ou não!



'Grande é a poesia, a bondade e as danças...

Mas o melhor do mundo são as crianças,

Flores, música, o luar, e o sol que peca

Só quando, em vez de criar, seca.



'E mais do que isto

É Jesus Cristo,

Que não sabia nada de finanças,

Nem consta que tivesse biblioteca...


( Fernando Pessoa )











'Gato que brincas na rua

Como se fosse na cama,

Invejo a sorte que é tua

Porque nem sorte se chama.




'Bom servo das leis fatais

Que regem pedras e gentes,

Que tens instintos gerais

E sentes só o que sentes.



'És feliz porque és assim,

Todo o nada que és é teu

Eu vejo-me e estou sem mim,

Conheço-me e não sou eu.


Janeiro de 1931


( Fernando Pessoa )



Texto retirado de : http://www.prof2000.pt/users/secjeste/fpessoa/Pg000700.htm

AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.


( Fernando Pessoa )

MAR PORTUGUÊS


Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!


Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu.

( Fernando Pessoa )




A Vida


A vida é o dia de hoje,

a vida é ai que mal soa,

a vida é sombra que foge,

a vida é nuvem que voa;

a vida é sonho tão leve

que se desfaz como a neve

e como o fumo se esvai:

A vida dura um momento,

mais leve que o pensamento,

a vida leva-a o vento,

a vida é folha que cai!



'A vida é flor na corrente,

a vida é sopro suave,

a vida é estrela cadente,

voa mais leve que a ave:

Nuvem que o vento nos ares,

onda que o vento nos mares

uma após outra lançou,

a vida – pena caída

da asa de ave ferida -

de vale em vale impelida,

a vida o vento a levou!



( João de Deus )





Beijo

'Beijo na face
Pede-se e dá-se:
Dá?
Que custa um beijo?
Não tenha pejo: Vá!



'Um beijo é culpa,
Que se desculpa:
Dá?
A borboleta
Beija a violeta:
Vá!



'Um beijo é graça,
Que a mais não passa:
Dá?
Teme que a tente?
É inocente...
Vá!



'Guardo segredo,
Não tenha medo...
Vê?
Dê-me um beijinho,
Dê de mansinho,
Dê!

' João de Deus in Campo de Flores'




Texto retirado de : http://www.citador.pt/poemas.php?op=10&refid=200809080418






O relógio


Passa, tempo, tic-tac
Tic-tac, passa, hora

Chega logo, tic-tac
Tic-tac, e vai-te embora
Passa, tempo

Bem depressa

Não atrasa

Não demora

Que já estou
Muito cansado

Já perdi

Toda a alegria

De fazer
Meu tic-tac


Dia e noite
Noite e dia


Tic-tac

Tic-tac

Tic-tac

. . .




Composição de Vinicius de Moraes/Paulo Soledade










Procissão



'Tocam os sinos da torre da igreja,

Há rosmaninho e alecrim pelo chão.

Na nossa aldeia que Deus a proteja!

Vai passando a procissão.




'Mesmo na frente, marchando a compasso,

De fardas novas, vem o solidó.

Quando o regente lhe acena com o braço,

Logo o trombone faz popó, popó.



'Olha os bombeiros, tão bem alinhados!

Que se houver fogo vai tudo num fole.

Trazem ao ombro brilhantes machados,

E os capacetes rebrilham ao sol.



'Tocam os sinos na torre da igreja,

Há rosmaninho e alecrim pelo chão.

Na nossa aldeia que Deus a proteja!

Vai passando a procissão.



'Olha os irmãos da nossa confraria!

Muito solenes nas opas vermelhas!

Ninguém supôs que nesta aldeia havia

Tantos bigodes e tais sobrancelhas!



'Ai, que bonitos que vão os anjinhos!

Com que cuidado os vestiram em casa!

Um deles leva a coroa de espinhos.

E o mais pequeno perdeu uma asa!



'Tocam os sinos na torre da igreja,

Há rosmaninho e alecrim pelo chão.

Na nossa aldeia que Deus a proteja!

Vai passando a procissão.



'Pelas janelas, as mães e as filhas,

As colchas ricas, formando troféu.

E os lindos rostos, por trás das mantilhas,

Parecem anjos que vieram do Céu!



'Com o calor, o Prior aflito.

E o povo ajoelha ao passar o andor.

Não há na aldeia nada mais bonito

Que estes passeios de Nosso Senhor!



'Tocam os sinos na torre da igreja,

Há rosmaninho e alecrim pelo chão.

Na nossa aldeia que Deus a proteja!

Já passou a procissão.







Aurora boreal

'Tenho quarenta janelas

nas paredes do meu quarto.

Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.

Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrela
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.

Por além entra a tristeza,
or aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
o silêncio, e a surpresa,
o amor dos homens, e o tédio,
o medo, e a melancolia,
essa fome sem remédio
que se chama poesia,
a inocência, e a bondade,
a dor própria, e a dor alheia,
a paixão que se incendeia,
a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.


' Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.
(António Gedeão)


Pedra Filosofal


Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

(António Gedeão

In Movimento Perpétuo, 1956)


Texto retirado de : http://www.citi.pt/cultura/literatura/poesia/antonio_gedeao/pedra_filo.html


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